Morei durante muitos anos em Paço de Arcos. Em dada altura
foi morar para o andar debaixo um casal um pouco estranho. Vestiam-se como
'hippies' dos anos 60, apesar de estarmos nos anos 90 e deles terem no máximo 30 anos de idade, tinham filhos atrás de filhos,
quando cruzávamos respondiam ao meu cumprimento sempre com os olhos no chão, ele
ausentava-se periodicamente por bastante tempo.
Quando já tinham 4 filhos houve uma noite em que ele me foi
tocar à campainha logo depois do jantar, 20H30 mais coisa menos coisa.
Cumprimentou-me e disse que precisava falar comigo e eu, parva, embora não
conseguindo vislumbrar nenhum assunto, mandei-o entrar. Sentados na minha sala
ele começou com uma conversa que eu nem estava a acreditar porque era de
loucos. Disse-me que tinha energias negativas em casa e que como se dedicava à
magia branca achava que as energias negativas só podiam estar a vir de alguém
nas proximidades que se dedicava à magia negra. Como eu recebia muitas pessoas
achava que era eu que fazia sessões de magia negra e que era daí que iam as
energias negativas para a casa dele. Entre o preocupada por estar sózinha, em minha
casa, com uma pessoa mentalmente desequilibrada e o perdida de riso com a
história, lá lhe respondi que não fazia magia de espécie nenhuma e que as
pessoas que recebia em casa eram simples amigos que vinham jantar, conversar,
tomar um café. Mas não resisti a acrescentar que achava que aquela visita dele
para me fazer aquela pergunta não servia para nada, ele não tinha como saber se o que eu lhe
respondera era verdade. Lançou-se num discurso em que começou por afirmar que
sabia que eu tinha dito a verdade porque sentia que eu tinha dito a verdade e
continuou por ali fora a falar de magia branca e magia negra, coisas sem nexo
nenhum (nem mesmo no universo da magia) e que às tantas já iam na prática de
sexo tântrico que dizia ter com a mulher. Eu continuava entre o preocupado e o
divertido e a pensar como ia livrar-me dele
quando fui salva pelo telefone. Era um amigo meu a dizer que estava ali
perto e a perguntar se podia passar lá por casa. Eu disse que sim, o meu
vizinho “nuts” percebeu que eu ia receber alguém e despediu-se e foi embora.
Alguns dias depois, mais ou menos pela mesma hora, eu estava a ler, ele voltou a tocar-me à campainha. Quando abri disse-me que só
tinha vindo saber se eu estava bem porque me tinha ouvido gritar. Respondi-lhe
que não tinha gritado, que estava tudo bem, agradeci e despachei-o. Mas fiquei mesmo preocupada com a loucura do
homem. Porque nem eu tinha gritado nem ninguém tinha gritado na vizinhança, eu
estava a ler com a casa em completo silêncio, sem música nem TV ligadas, se
alguém tivesse gritado algures na vizinhança eu também teria ouvido. E eu não
tinha ouvido grito algum, nada, ninguém tinha gritado.
Mais uns dias passados, 4 da manhã, sou acordada pela campainha da minha porta a
tocar “a fogo”. Levantei-me assarapantada, vesti qualquer coisa rapidamente e
fui à porta. Era a polícia acompanhada pelo vizinho. Abri, convencida de que
algo de grave estava a acontecer no prédio. Os polícias, mal eu abri a porta
devem ter logo percebido que o vizinho não regulava bem. Tinha sido ele a
chamá-los porque eu estava a ameaçá-lo de morte. Respondi-lhes que, como com
certeza já tinham percebido, eu estava a dormir e não a ameaçar ninguém e,
claro, eles pediram desculpa e foram embora.
Voltei a dormir e quando acordei de manhã lembrei-me da
cena. Mas achei-a tão “fora” que estive uns bons minutos sem conseguir ter a
certeza se tinha acontecido ou se eu tinha sonhado , “É tão real... aconteceu
mesmo”, “Não, não pode ser, devo ter sonhado”, “Mas é mesmo real, acho que
aconteceu”, “Eu ando preocupada com o vizinho se calhar sonhei”. Fiquei certa
de que era real, tinha acontecido, quando reparei que tinha os óculos ali ao pé
da cama. Uso lentes de contacto e só costumo usar os óculos desde que me
levanto até sair para o trabalho e, por isso, o sítio dos óculos é na casa de
banho, onde os coloco depois de lavar a cara ao levantar-me, e os retiro quando
coloco as lentes antes de sair. Portanto ter os óculos ao lado da cama era
sinal de que os tinha usado durante a noite e a única explicação para isso era
a cena ter sido real e não um sonho pois não sou sonâmbula. Fiquei FURIOSA!!! O
homem era de certeza maluco e eu não estava para o aturar e tinha de lhe dar um
basta. Quando saí de casa parei no andar de baixo e toquei mas ninguém me
atendeu. Fui trabalhar e ao fim do dia estava ainda mais furiosa com o assunto
do que de manhã. Voltei a tocar no andar de baixo quando regressei a casa. Ele
respondeu-me de dentro de casa, disse que no momento não podia abrir, eu
identifiquei-me e disse que queria falar com ele e ele disse que logo que
pudesse ia a minha casa. Apareceu uns minutos depois. Muito simpático, todo
sorrisos “Quer falar comigo aqui na sua casa ou quer vir à minha?”. Respondi-lhe:
“Nem uma coisa, nem outra. Falamos aqui mesmo à porta pois o que tenho para lhe
dizer é curto. O senhor já anda a aborrecer-me há muito tempo, foi a história
da magia negra, depois foi a história do grito, mas ontem ultrapassou todos os
limites com a cena das ameaças de morte às 4 da manhã. Portanto fica avisado,
não vem mais tocar-me à porta por razão alguma pois se vier sou eu quem chama a
polícia para dar queixa de si. Adeus.” E fechei a porta.
Ele não voltou a aparecer à minha porta. Passado pouco tempo
ausentou-se por longos dias. Quando voltou não saía para trabalhar e andava
muitas vezes na rua, para trás e para a frente, descalço, de tronco nu, sujo,
desgrenhado. Algum tempo depois voltou a ausentar-se e durante essa ausência
veio a mulher bater-me à porta. Abri temendo que fosse outra loucura qualquer.
Mas não era. Era sim a explicação – já adivinhada – das loucuras anteriores. Disse-me
que o marido sofria de uma esquizofrenia grave, que estava cada vez pior, que
tinha a casa toda preta de fumo de vela das “magias” dele, que ela já não
aguentava mais e estava a tentar divorciar-se, que o marido não queria o
divórcio e que o psiquiatra que o acompanhava também achava que o divórcio era mau para ele,
e por isso vinha pedir-me para, caso precisasse, eu testemunhar a favor dela
contando as maluqueiras que ele aprontara comigo. Disse-lhe que sim mas –
felizmente – não foi preciso. Ele não voltou a aparecer (suponho que tenha
ficado internado) e alguns meses depois ela e as crianças também se mudaram.
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