domingo, 20 de setembro de 2015

HIATÓRIAS ANTIGAS - Vizinho estranho



Morei durante muitos anos em Paço de Arcos. Em dada altura foi morar para o andar debaixo um casal um pouco estranho. Vestiam-se como 'hippies' dos anos 60, apesar de estarmos nos  anos 90 e deles terem no máximo 30 anos de idade, tinham filhos atrás de filhos, quando cruzávamos respondiam ao meu cumprimento sempre com os olhos no chão, ele ausentava-se periodicamente por bastante tempo.

Quando já tinham 4 filhos houve uma noite em que ele me foi tocar à campainha logo depois do jantar, 20H30 mais coisa menos coisa. Cumprimentou-me e disse que precisava falar comigo e eu, parva, embora não conseguindo vislumbrar nenhum assunto, mandei-o entrar. Sentados na minha sala ele começou com uma conversa que eu nem estava a acreditar porque era de loucos. Disse-me que tinha energias negativas em casa e que como se dedicava à magia branca achava que as energias negativas só podiam estar a vir de alguém nas proximidades que se dedicava à magia negra. Como eu recebia muitas pessoas achava que era eu que fazia sessões de magia negra e que era daí que iam as energias negativas para a casa dele. Entre o preocupada por estar sózinha, em minha casa, com uma pessoa mentalmente desequilibrada e o perdida de riso com a história, lá lhe respondi que não fazia magia de espécie nenhuma e que as pessoas que recebia em casa eram simples amigos que vinham jantar, conversar, tomar um café. Mas não resisti a acrescentar que achava que aquela visita dele para me fazer aquela pergunta não servia para nada,  ele não tinha como saber se o que eu lhe respondera era verdade. Lançou-se num discurso em que começou por afirmar que sabia que eu tinha dito a verdade porque sentia que eu tinha dito a verdade e continuou por ali fora a falar de magia branca e magia negra, coisas sem nexo nenhum (nem mesmo no universo da magia) e que às tantas já iam na prática de sexo tântrico que dizia ter com a mulher. Eu continuava entre o preocupado e o divertido e a pensar como ia livrar-me dele  quando fui salva pelo telefone. Era um amigo meu a dizer que estava ali perto e a perguntar se podia passar lá por casa. Eu disse que sim, o meu vizinho “nuts” percebeu que eu ia receber alguém e despediu-se e foi embora.

Alguns dias depois, mais ou menos pela mesma hora, eu estava  a ler, ele voltou a tocar-me à campainha. Quando abri disse-me que só tinha vindo saber se eu estava bem porque me tinha ouvido gritar. Respondi-lhe que não tinha gritado, que estava tudo bem, agradeci e despachei-o. Mas  fiquei mesmo preocupada com a loucura do homem. Porque nem eu tinha gritado nem ninguém tinha gritado na vizinhança, eu estava a ler com a casa em completo silêncio, sem música nem TV ligadas, se alguém tivesse gritado algures na vizinhança eu também teria ouvido. E eu não tinha ouvido grito algum, nada, ninguém tinha gritado.

Mais uns dias passados, 4 da manhã,  sou acordada pela campainha da minha porta a tocar “a fogo”. Levantei-me assarapantada, vesti qualquer coisa rapidamente e fui à porta. Era a polícia acompanhada pelo vizinho. Abri, convencida de que algo de grave estava a acontecer no prédio. Os polícias, mal eu abri a porta devem ter logo percebido que o vizinho não regulava bem. Tinha sido ele a chamá-los porque eu estava a ameaçá-lo de morte. Respondi-lhes que, como com certeza já tinham percebido, eu estava a dormir e não a ameaçar ninguém e, claro, eles pediram desculpa e foram embora.

Voltei a dormir e quando acordei de manhã lembrei-me da cena. Mas achei-a tão “fora” que estive uns bons minutos sem conseguir ter a certeza se tinha acontecido ou se eu tinha sonhado , “É tão real... aconteceu mesmo”, “Não, não pode ser, devo ter sonhado”, “Mas é mesmo real, acho que aconteceu”, “Eu ando preocupada com o vizinho se calhar sonhei”. Fiquei certa de que era real, tinha acontecido, quando reparei que tinha os óculos ali ao pé da cama. Uso lentes de contacto e só costumo usar os óculos desde que me levanto até sair para o trabalho e, por isso, o sítio dos óculos é na casa de banho, onde os coloco depois de lavar a cara ao levantar-me, e os retiro quando coloco as lentes antes de sair. Portanto ter os óculos ao lado da cama era sinal de que os tinha usado durante a noite e a única explicação para isso era a cena ter sido real e não um sonho pois não sou sonâmbula. Fiquei FURIOSA!!! O homem era de certeza maluco e eu não estava para o aturar e tinha de lhe dar um basta. Quando saí de casa parei no andar de baixo e toquei mas ninguém me atendeu. Fui trabalhar e ao fim do dia estava ainda mais furiosa com o assunto do que de manhã. Voltei a tocar no andar de baixo quando regressei a casa. Ele respondeu-me de dentro de casa, disse que no momento não podia abrir, eu identifiquei-me e disse que queria falar com ele e ele disse que logo que pudesse ia a minha casa. Apareceu uns minutos depois. Muito simpático, todo sorrisos “Quer falar comigo aqui na sua casa ou quer vir à minha?”. Respondi-lhe: “Nem uma coisa, nem outra. Falamos aqui mesmo à porta pois o que tenho para lhe dizer é curto. O senhor já anda a aborrecer-me há muito tempo, foi a história da magia negra, depois foi a história do grito, mas ontem ultrapassou todos os limites com a cena das ameaças de morte às 4 da manhã. Portanto fica avisado, não vem mais tocar-me à porta por razão alguma pois se vier sou eu quem chama a polícia para dar queixa de si. Adeus.” E fechei a porta.

Ele não voltou a aparecer à minha porta. Passado pouco tempo ausentou-se por longos dias. Quando voltou não saía para trabalhar e andava muitas vezes na rua, para trás e para a frente, descalço, de tronco nu, sujo, desgrenhado. Algum tempo depois voltou a ausentar-se e durante essa ausência veio a mulher bater-me à porta. Abri temendo que fosse outra loucura qualquer. Mas não era. Era sim a explicação – já adivinhada – das loucuras anteriores. Disse-me que o marido sofria de uma esquizofrenia grave, que estava cada vez pior, que tinha a casa toda preta de fumo de vela das “magias” dele, que ela já não aguentava mais e estava a tentar divorciar-se, que o marido não queria o divórcio e que o psiquiatra que o acompanhava  também achava que o divórcio era mau para ele, e por isso vinha pedir-me para, caso precisasse, eu testemunhar a favor dela contando as maluqueiras que ele aprontara comigo. Disse-lhe que sim mas – felizmente – não foi preciso. Ele não voltou a aparecer (suponho que tenha ficado internado) e alguns meses depois ela e as crianças também se mudaram.

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